sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

«Uns versos Quaisquer (1) PESSOA E A INTERNET»


O melodioso sistema do Universo,

O grande festival pagão de haver o sol e a lua

E a titânica dança das estações

E o ritmo plácido das elípticas

Mandando tudo estar calado.

E atender apenas ao brilho exterior do Universo.


Álvaro de Campos, 27-11-1914

[In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002]


De vez em quando recebo uns mails daqueles cheios de boas intenções muito bem arrumadas (não tenho nada contra as intenções, eu própria estou cheia de delas, nem contra as arrumações, que ando sempre a fazê-las em casa e nas ideias), o problema é que esses textos umas vezes são atribuídos a Garcia Marquez, outras a Jorge Luís Borges, e ainda a outros autores que agora não recordo. Basta ter lido um pouco daqueles autores para se perceber imediatamente que o texto não tem nada a ver com eles.
Recebi recentemente um mail cujo assunto era qualquer coisa como “Fernando Pessoa e a crise”, entendamos: o Fernando Pessoa que foi, na poesia que continua a ser, e a crise que não deixou de ser, pelo menos foi o que pensei antes de ler o mail. Vinha, como certificado de garantia, acompanhado de uma pintura representando Fernando Pessoa. Tudo bem, até aí. O problema era o poema. Não era um poema, era um problema. Um enigma. Que ainda hoje não resolvi na totalidade, mas que tenho a certeza não ser de Fernando Pessoa. Quem o escreveu, é para mim um mistério que desisti de desvendar, mas Fernando Pessoa NÃO FOI. Aposto com quem quiser.
Acreditam que ele poderia ter escrito isto?:

Ser feliz é reconhecer que vale a pena viverapesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas ese tornar um autor da própria história.É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrarum oásis no recôndito da sua alma .É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.É saber falar de si mesmo.É ter coragem para ouvir um 'não'.É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.

Sem pôr em causa as boas intenções, a moralidade e mesmo a eficácia, para quem conseguir, mas…

Não, definitivamente não. Da sintaxe ao vocabulário, passando pelas ideias. Demasiado linear. Mesmo um Caeiro, um Campos, que não ligavam nada à regularidade (Reis era semi-regular, de uma regularidade muito própria) métrica, rítmica ou estrófica, não se atreveriam a este discurso de pastor protestante em dia de missa (com todo o respeito por todos os pastores, a começar pelo de Caeiro…), Mas Caeiro falaria das árvores e Campos falaria das máquinas, Pessoa não encontrou nenhum oásis dentro da alma, até porque com tanta alma era impossível esquadrinhar em todas. Nem estou a ver se ele estava interessado nisso. Também não estou a ver nenhum deles a verbalizar o agradecer a cada manhã o milagre da vida, sobretudo desta maneira, mas imagino perfeitamente Caeiro a fazê-lo em silêncio, com árvores nas pupilas, Campos com barcos a saírem-lhe dos olhos.

Para ouvir um “não”, não é preciso ter coragem, basta ter ouvidos. O problema é depois. E o problema começa logo ao nascer. Sobre isto Pessoa escreveu uma arca de poemas que ainda hoje cintilam como estrelas lúcidas. Basta lermos com atenção o poema em epígrafe, para vermos como Álvaro de Campos escreve um poema ao estilo de Caeiro, o mestre. Este poeta não cabe em sistemas (nem nos que ele próprio criou) ou em morais, é maior que tudo isso.

Tudo o que se diz no mail abusivamente atribuído a Pessoa que recebi, está condensado com muito mais elegância po(ética) e estética em:
“E atender apenas ao brilho exterior do Universo.”

Sobre Pessoa, estamos conversados.

Sobre a crise, apetece-me enviar um e-mail para o éter “Mandando tudo estar calado”. Pode ser que com algum silêncio se consiga pelo menos resolver a crise dentro de cada um de nós. Ou recomendando “O grande festival pagão de haver o sol e a lua”. Pagão que, ocorre-me agora dizer, afinal Deus foi (ou é?). Que grande confusão quando se fala dele (e no entanto, às vezes, um sussurro dentro do coração, uma aragem leve, leve, no cabelo, uma paz no corpo, falam-nos dele. Seja ele (ou ela? ou ele e ela?) quem for(em): criador ateu, criador cristão, muçulmano, judeu ou pagão. Ou Fernando Pessoa, que por vezes para mim, só com um verso, é consolador como um sonho de Deus.

© Risoleta C Pinto Pedro

http://risocordetejo.blogspot.com/

1 comentário:

Rui disse...

Também aposto!
Muito bem analisado.
A ingenuidade dos internautas (ou a facilidade dum "clique" para reencaminhar sem meditar): o sangue raro urgente, o cartão multibanco com o código invertido...
Quanto à falsa "crise": "fazerem-nos" a cabeça para não reinvidicarmos o que é justo e aceitarmos Códigos de Trabalho contra o expectável das vantagens do "eixo do tempo" e o já mais que possível usufruto do ócio para que nascemos, como nos alertou o grande Agostinho da Silva...